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09 janeiro 2016

Um conto de Fayza Hayat...

O pior do melhor e o melhor do pior
é o título escolhido por Faíza Hayat
para este conto que publicou em Janeiro de 2008 

Faíza Hayat
  
No último dia do ano sobressaltei-me ao descobrir no Público quatro páginas dedicadas ao melhor e ao pior lado dos portugueses. A lista do pior lado ocupava, em grandes letras, as duas páginas por completo.
A lista do melhor ocupava metade desse espaço. Na lista do melhor havia itens que fariam mais sentido na lista das desgraças. Compreendo, por exemplo, que o facto de os portugueses visitarem mais os médicos do que os restantes europeus possa ser um indicador de preocupação com a saúde. Mas também pode ser um indicador de hipocondria. Eu preferia passar os próximos cinquenta anos sem visitar médicos nem advogados. Na lista consta também que os portugueses reclamam muito enquanto consumidores. Isto pode significar que conhecemos os nossos direitos e lutamos por eles, o que realmente me parece positivo, Mas também significa que não somos bem servidos.
            Outro item um tanto estranho na lista d’”o nosso melhor lado” tem a ver com a preferência nacional por casas com vista para o mar. Provavelmente os húngaros, os austríacos e os luxemburgueses também apreciam as casas com vista para o mar, embora naqueles países seja um pouco difícil conseguir vista para o mar. Eu cá gostaria de ter uma casa com vista para o mar – já agora para o mar de Parati – e do lado de trás com uma imensa varanda com vista para o Grand Canyon. Melhor ainda seria ter uma casa com muitas janelas, cada uma com uma vista diferente.
            Por outro lado não consigo compreender o motivo porque a lista d’”o nosso melhor lado” é tão breve.. Eis outros itens que eu acrescentaria à tal lista, sem pensar muito, e sem necessidade de consultar relatórios, inquéritos ou sondagens: somos um dos países com mais horas de sol da Europa. Somos um dos países com maior número de caixas multibanco. Somos um dos países europeus onde se come melhor, e por melhor preço. Temos os melhores pastéis de nata do mundo e o melhor vinho do Porto. Eu acho que só pelos pastéis de nata já vale a pena ser portuguesa.
            Passo a maior parte do ano fora de Portugal. Os meus olhos já são um pouco estrangeiros. Talvez por isso veja mais facilmente o lado bom do que o lado mau dos portugueses. A dificuldade em ver o lado bom do que quer que seja é uma das marcas do caracter nacional -- e aqui temos um item a juntar ao “nosso pior lado” .
 Segundo o Público, “o nosso pior lado” inclui excentricidades como não gostarmos de falar do cancro colorectal, e morrermos de medo de perder o emprego. A verdade é que o nosso pior lado nunca chega a ser realmente mau. Somos tão pequenos, tão acanhados, que nem em maldade conseguimos ser grandes       . A Alemanha teve Hitler, e ainda hoje tem nazis. A França enfrenta gravíssimos problemas com a integração dos emigrantes. A Bélgica está à beira do fim. Espanha tem a ETA. Podia continuar assim até ao final desta página. Ao lado da maioria dos países europeus, e fiquemo-nos apenas pela Europa, Portugal é um oásis de minúscula felicidade. Só os portugueses não se apercebem disso.
            O início do ano é uma boa altura para coligir listas. Talvez mais vantajoso do que saber qual o nosso lado bom e o nosso lado, digamos, menos apresentável, seja uma lista das melhores coisas que podemos fazer esta ano, e daquilo que seria excelente se conseguíssemos evitar. Eu, por exemplo, gostaria de conseguir evitar, além dos advogados e dos médicos, as multidões, a celulite, as longas filas, os imbecis e os maus filmes, não necessariamente por esta ordem. Já entre as melhores coisas que pretendo fazer esta ano está uma viagem à Líbia para visitar Sabratha, concluir o doutoramento e casar-me com Caetano Veloso. Bem sei que Caetano já não é um menino mas, ao menos em palco, ainda se move como um menino – eu vi o último espectáculo – e além disso está solteiro.
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Publicado em 06.01.2008
no suplemento “Pública”

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