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01 novembro 2011

Faiza Hayat

Escrito em 22 05 2004
Para o dia terminar em beleza, apenas mais um apontamento.
Diz respeito à Crónica de Faíza Hayat na Revista Xis de hoje.
Faíza é uma escritora jovem mas com uma filosofia de vida muito interessante e são sempre curiosos os seus escritos.



Faiza Hayat


“Quando voltei, o mês passado, do Egipto, tinha no gravador uma mensagem de uma amiga minha de Lisboa, avisando-me que estaríamos juntas no Dia da Mãe.
(…) “Lérida (ou Lleida) fica a menos de duas horas de Barcelona, em direcção a Saragoça.

A minha amiga chegou à Catalunha no primeiro voo de Lisboa, alugou um carro no aeroporto e veio buscar-me. O objectivo da visita era um “pueblo” triste nos arredores de Lérida. Aliás, o objectivo era o cemitério da vila.

A minha Mãe morreu nesta estrada, era eu criança, num desastre de viação. Eu ia no carro. O meu pai conduzia”, contou-me esta amiga, num tom muito calmo.

A campa não era sítio nenhum: uma lápide de mármore frio, uma cruz de latão, um nome castelhano. “Não é o nome da minha Mãe. Os nomes, sem as pessoas, duram pouco. Sobretudo num cemitério. Não conseguimos prende-los aqui. Apenas nos prendemos a nós”. Então para quê a visita de tão longe?
Durante quase vinte anos, ela veio àquele cemitério perdido, trazida pelo Pai, para deixar flores numa campa alheia, rezar uns minutos (ou deixar que passasse o tempo de uma oração, quando ela deixou de acreditar em orações), depor umas flores e voltar, em silêncio, a Portugal. Até ao ano seguinte, em Novembro, para nova visita, “Nunca fez muito sentido para mim vir cá. Acho que para o meu Pai também não. Mas vínhamos aqui por mim. Até ao dia em que ele foi capaz de me contar como tudo aconteceu, o acidente, a autópsia, a escolha de a Mãe ficar aqui “e não viajar mais””. Esse dia aconteceu há pouco.

Compreendi então que a melhor maneira de honrarmos os mortos é amar os vivos que eles amavam. Há muito tempo que nada da minha Mãe existe na campa da minha Mãe. Existiu um corpo e um frio, ali, mas depois o corpo desapareceu, por rotação dos restos. Hoje, é uma ficção. Aquele sítio é apenas o sítio do último sítio. E depois do último não há nada. A não ser… nós: os vivos”.
Os vivos são os que recordam, mas também os que amam. A minha amiga tirou da malinha um “spray” de tinta, agitou e escreveu no mármore: “Nenhuma de nós ficou aqui. Adeus”. Voltou tranquila nessa mesma noite a Lisboa.
Que pesada a ausência de Filipa, e que bom ter alguém para preencher a falta que ela nos faz.

De regresso a casa, peguei no telefone, para uma surpresa de Dia da Mãe. “Pai? Sou eu…”

Tão bonito…

Faíza Hayat nasceu em Lisboa, filha de mãe portuguesa, católica, e pai goês, muçulmano.

Reside em Barcelona, onde prepara um doutoramento em antropologia.

Assinou durante vários anos uma crónica na revista XIS, "Conversas com o Espelho".

Tem contos publicados em diversas revistas espanholas e portuguesas.

O "Evangelho Segundo a Serpente" é o seu primeiro romance.

A compilação das suas crónicas num volume intitulado "Conversas com o Espelho" será igualmente publicada em breve pela Dom Quixote.

1 comentário:

mariajvsdias disse...

Trouxe de casa onde não resido mais, papelada e mais papelada para onde estou agora.Pousei no chão o caixote e comecei a deitar fora o que já não fazia sentido. entre os papeis saltaram me para a mão as crónicas de Faíza no XIS que tanto me ilusionaram.Fiquei desde então rendida à sua escrita e agora que vou entrar num período de "choosing paths", vou entrar numa livraria e pegar no que encontrar desta escritora que tanto me impressiona.
Muitas vezes utilizei a sua frase "Margarida eu fosse" na crónica "A luz e o lume"