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13 março 2010

O sono do João

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"Aquele que partiu no brigue Boa Nova
e na barca Oliveira, anos depois voltou;
Aquele santo (que é velhinho e já corcova)
Uma vez, uma vez, linda menina amou:
Tempos depois, por uma certa lua-nova,
Nasci eu... O velhinho ainda cá ficou,
Mas ela disse:" -Vou, ali adiante, à Cova,
António, e volto já..." E ainda não voltou!
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É assim que António Nobre inicia o seu "Só". Um poema a que chamou "Memória" e dedicou à Mãe e ao Pai.
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António Nobre referindo-se ao seu único livro publicado em vida, (1892), declara que é o livro mais triste que há em Portugal

António Nobre

O João dorme... (Ó Maria,
Dize àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá, o João, acordar...)
Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria... um morango!
Podia engoli-lo um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores...
Mas os astros são menores!

O João dorme... Que regalo!
Deixá-lo dormir, deixá-lo!
Calai-vos águas do moinho!
Ó mar! fala mais baixinho...
E tu mãe! e tu, Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá, o João, acordar...

O João dorme, o inocente!
Dorme, dorme, eternamente,
Teu calmo sono profundo!
Não acordes para o mundo,
Pode levar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é...
Ó mãe! canta-lhe a canção,
Os versos do teu irmão:
« Na vida que a dor povoa,
Há só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir...
Tudo vai sem se sentir.»

Deixa-o dormir, até ser
Um velhinho... até morrer!

E tu vê-lo-ás crescendo
A teu lado (estou vendo
João! que rapaz tão lindo!)
Mas sempre, sempre dormindo...

Depois, um dia virá
Que (dormindo) passará
Do berço onde agora dorme,
Para outro, grande, enorme:
E as pombas que eram maiores
Que João... ficarão menores!

Mas para isso, ó Maria!
Dize àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá, o João, acordar...

E os anos irão passando.

Depois, já velhinho, quando
(serás velhinha também)
Perder a cor que, hoje, tem,
Perder as cores vermelhas

E for cheiinho de engelhas,
Morrerá sem o sentir:
Isto é, deixa de dormir:
Acorda e regressa ao seio
De Deus, que é donde ele veio...

Mas para isso, ó Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:

Não vá, o João, acordar...
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António Nobre
Paris, 1891.
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in. "Só"Ed. da Livraria Tavares Martins - 1968

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