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19 março 2009

Dr.Jorge Seabra...

"A Coimbra académica do meu tempo"
por Jorge de Seabra

O dr. Jorge de Seabra
na década de 50
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Um pequeno volume, que o carteiro deixou na minha anterior morada, chegou às minhas mãos um mês depois de me ter sido enviado… Por minha culpa, que não forneci o meu novo endereço, um livro que me foi prometido em princípios de Fevereiro… só ontem chegou às minhas mãos!
Mesmo assim, chegou a tempo, Eduardo...
Obrigado!...

São crónicas com data anterior a algumas que já aqui publiquei.

Dedicatória do Dr.Jorge de Seabra ao tio José (o Pai Zé Grilo)
"Ao querido José com um Xi do coração do sobrinho mtºamigo"
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À hora a que escrevo estas palavras já li quase metade desta obra que foi editada no Porto, em 1948. Já conhecia o estilo admirável do Dr.Jorge de Seabra através das “Crónicas” que nos deixou no jornal “Beira Baixa”, que se publica em Castelo Branco. Só que estas crónicas, aqui reunidas neste livro são anteriores àquelas de que eu tinha conhecimento. Estas Crónicas foram editadas no “Beira Baixa” entre Março de 1940 e Abril de 1947…
Fui encontrar, nas páginas que já li, nomes que conheci quando jovem, como o de Caeiro da Mata que foi Reitor da Universidade de Lisboa, ministro da Educação Nacional e dos Negócios Estrangeiros de Salazar, de Elísio de Moura catedrático da Faculdade de Medicina que deixou o seu nome ligado à Pediatria e foi o primeiro bastonário da Ordem dos Médicos, de Pacheco de Amorim catedrático de Matemática na Universidade de Coimbra e político e de Marnoco e Sousa, figura lendária no Direito de Coimbra e Mestre, que foi, de Oliveira Salazar…
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É curioso o episódio que li, onde Jorge de Seabra descreve as “Memórias privilegiadas” de Basílio Freire, Caeiro da Mata e Marnoco e Sousa. Vale a pena perderem um pouco do vosso tempo para ler esta curiosa referência…
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“Ora os três prodigiosos “lentes” em assuntos de “retentiva” eram, nem mais nem menos do que o Dr. Basílio Freire, mestre de Medicina, seu genro o Dr. Caeiro da Mata e o Dr. Marnoco e Sousa, estes dois últimos professores de Direito. Pelo que toca ao primeiro, ao Dr.Basílio, era a sua memória qualquer coisa de fantástico, de tremendo, de embasbacar metendo num chinelo o atrevido “salta-pocinhas” que, de fraque, luvas brancas e camélia ao peito, lhe quisesse fazer sombra, recitando a Lágrima, a Lua de Londres ou um desses Cantares de Amigo em que era forte o nosso Rei Lavrador. Nesta altura, o tal “salta-pocinhas” ver-se-ia grego, tendo de ouvir, a pé firme e sem pestanejar, a recitação, por parte do erudito Mestre, não só de todo o Cancioneiro da Ajuda, como ainda de cem ou cento e cinquenta páginas da horrível e desconcertante “Anatomia”.
(…)
Mas se o Dr.Basílio era considerado um ás nos domínios da “hipermnésia” , também por lá havia quem o igualasse, neste particular, sem sair da família. Refiro-me ao seu genro e meu antigo professor Dr.Caeiro da Mata, gentleman e aprumado como seu sogro e zeloso proprietário de uma das mais formidáveis memórias que me foi dado conhecer pelas margens do Mondego. Nas disciplinas de Direito Peninsular, em que o predicado inteligência tem de ceder, quer se queira quer não, o passo à indispensável memoriazinha – era o arguto Mestre duma precisão tremenda, de endoidecer o mais equilibrado dos miolos! A matéria de História do Direito Português, uma espécie de “Anatomia” da Faculdade de Direito
(…)
Um autêntico prodígio que só teria talvez, sério competidor no Dr.Marnoco, outro atleta em assuntos de memória.
(…)
Mas o Dr.Caeiro da Mata tinha também a sua vaidade, a sua vaidadezinha em saber de cor e salteado, o nome completo de todos os seus alunos! Sim, meus senhores, o nome completo, completíssimo de todos os seus alunos, que não eram poucos!
E assim, era frequente ouvirmo-lo pelas ruas e ruelas da velha cidade universitária, quando algum estudante, respeitosamente o cumprimentava, destraçando a coçada capa, - dizer com um sorriso nos lábios de liquefazer o coração:
- “Ora como vai o Sr. Carlos Armando Luís José Joaquim do Rosário Miranda?” – Ou então, “Como tem passado o sr. Francisco Lopes Azevedo Coelho Matos Castelo Branco Levita”?...
E o facto é que o Dr. Caeiro, dizendo-nos ali, nas respeitabilíssimas bochechas, o nome completo, tornava-se simpático, atraente, fino.
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Em dada ocasião, entabulando, no Porto, amena cavaqueira com o meu colega, há pouco falecido, Dr.Ramos da Silva, diz-me este, alturas tantas:
- O Dr.Seabra não quer saber uma coisa?
- Diga lá.
- Tendo ido, há dias, a Lisboa, encontrei numa das minhas peregrinações pela Rua do Ouro, o Dr.Caeiro…
- E depois?
- E, depois, como lhe tirasse a indispensável chapelada, ele aí vem todo fresco e risonho a cumprimentar-me, desfechando heróico e como se tivesse estado comigo na véspera:
- “Ora viva o colega José António de Matos Ramos da Silva!”
Imagine Dr.Seabra, que nem o… Silva faltou!
(…)
O episódio contado por Jorge Seabra sobre a “luta” entre Caeiro da Mata e Marnoco e Sousa cada um dos quais defendendo a sua memória, merece uma referência…
“Como ficou dito eram estes dois Professores de Direito detentores da mais estupenda memória que pode conceber-se, duvidando-se, no entanto, qual deles a teria maior, mais potente, mais arrasante.
Tornava-se, pois, imperioso e inadiável que o negócio se deslindasse para sossego da intelectualidade coimbrã. E, em dada altura, são os próprios Mestres, rivais em assuntos de retentiva, mas amigos e leais em tudo o mais, que deliberam, numa renhida competição, dar uma satisfação ao respeitabilíssimo público, metendo, para o efeito, nos respectivos miolos e no curto prazo de meia hora, um artigo de fundo do Século sob o título “Da Influência da Marinha Mercante nos Vários Ramos da Actividade Nacional”. E se bem o pensaram, melhor o fizeram, escolhendo para o desenrolar do prélio, um recanto da Livraria “França Amado”, encetando a ordem dos trabalhos o Dr. Caeiro da Mata que, num “elan” admirável, numa corrida vertiginosa, vai papagueando todo aquele infindável rosário de palavras, vírgulas, pontos finais e de interrogação, tracinhos e mais tracinhos de por os cabelos em pé, se os tivesse, ao seu temível antagonista que, de jornal em punho, não deixa de fiscalizar, de olhos esgazeados, a heróica cavalgada do colega, muito fresco e certo do triunfo final.
Aprovado plenamente o Dr.Caeiro, é dada agora, por este, a palavra ao Dr.Marnoco que passa, imediatamente, ao amigo e colega, o jornal para a imprescindível fiscalização.
E lá vai o Dr. Marnoco por ali fora, rápido, tremendamente rápido, como pedregulho em declive, batendo-se ardorosamente em defesa da sua dama, da sua privilegiada memória , recitando, em voz nasalada e compondo, por vezes, as lunetas que parecem esgueirar-se pelo nariz: Mais isto, mais aquilo, zás, catrapuz, vírgula, traço ponto final…
Na altura do ponto final, e quando a arenga estava prestes a terminar, prevendo-se um empate na esgotante prova – eis que intervém o Dr. Caeiro:
- Mentes tu! Não, não é ponto final!
- Então? – interroga, atónito e alagado em suor, o Dr. Marnoco.
- É… caca de mosca – retruca o Dr. Caeiro
O Dr. Marnoco, embora prodigioso no decoranço de qualquer matéria – confundindo a excrescência da mosca com um ponto final, coisas na verdade muito parecidas – perdera a partida, o que de resto, nada ou muito pouco, veio afectar a fama da sua privilegiada memória, tão potente e sólida como a do seu antagonista, e que só por um erro de visão a ele não se igualou…
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Esta leitura diverte-me, até por me lembrar da figura divertida e agradável do Dr.Jorge Seabra… Mas não posso deixar de referir aqui, depois de ler todas estas referências que o autor faz ao Prof. Marnoco e Sousa, que eu já conhecia um “bocadinho” da história deste académico do tempo da monarquia… Uma “estória” que ouvi contar há longos… longos anos, que o dava como protagonista num caso que correu de boca em boca... sob o signo da "malandrice"...
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Contava-se em Coimbra, numa tradição oral que galgou muitas gerações, que o Professor Marnoco e Sousa, um catedrático respeitável, vertical e pouco dado a “coisas menos próprias”, também tinha casado…
Numa noite em que casal resolveu beneficiar das regalias de uma união feliz, a jovem esposa, um pouco entusiasmada, permitiu-se exprimir sonoramente as delícias daquele momento…
“Chocado” com tal situação… o Prof. Marnoco e Sousa “interrompeu” o seu “trabalho”, acendeu a luz da cabeceira e advertiu a jovem esposa:
Senhora Dona Micaela!... Faça o favor de me apropinquar o órgão da reprodução da espécie!...Se esses trejeitos mundanos não são com fins altruístas mas sim motivados pelo vil pecado da concupiscência… eu desmonto… mas desmonto já!!...” Apagou de novo a luz e...continuou o serviço!...
Não sei se era Micaela o nome da jovem noiva… Não sei se era tão formal assim, o coimbrão professor… Apenas sei que ouvi, pela primeira vez, falar do Prof.Marnoco e Sousa quando me contaram esta “anedota” que corria a seu respeito e já devia correr desde os finais do século dezanove… uma vez que o professor faleceu em 1919, com 46 anos e já devia ser casado antes de 1900...
Se non é vero... é bene trovato!

1 comentário:

Stalker disse...

Acho deliciosas estas referências, por uma razão bem trivial. Moro na Rua Dr. Jorge Seabra e é com com muito gosto que leio o seu postal.
Onde é que poderei encontrar este livro?
Saudações desde Castelo Branco!